Vocês não sei, mas eu estou exausto. Tenho a sensação de que estamos a viver o apocalipse, só que não é exactamente como o imaginámos: não há uma explosão brutal, rápida, avassaladora que varra tudo de uma vez; o apocalipse é uma espécie de novela diária, massacrante, com protagonistas odiosos, novela que consegue ser lenta e, ao mesmo tempo, voraz. O apocalipse é um Pac Man devorando uma longa linha de bolinhas brancas de sanidade.
Em poucos dias vi um video de JD Vance, na América, a clamar por mais bebés, a um passo de dar a entender que, para ele, The Handmaid’s Tale é uma boa ideia. Depois, vi algumas pessoas da extrema-direita americana, como Elon Musk, espalhar a mentira - ferramenta favorita dessa gente - de que a extraordinária série Adolescence era baseada num massacre real e que a etnia do assassino tinha sido trocada pelos autores para um rapaz branco - sendo que não só Adolescence não se baseia no dito massacre nem em nenhum em particular, como é sobre um assunto que afecta, em grande número, rapazes brancos - a cultura incel, a promoção do ódio para com as mulheres. Claro que como acontece hoje em dia, não há verdade nem mentira - há um buffet de opções onde cada um escolhe o que mais lhe agrada, e se há pessoas que preferem acreditar na mentira de que Adolescence alterou a etnia de um assassino real, nada as irá demover. Mesmo que, lá no fundo, saibam que é mentira. Apenas não lhes interessa que seja verdade. E, com isso, deixaram também de se interessar em ser seres humanos minimamente decentes. Já não há esse conceito: a decência passou a ser tão relativa e abstracta como a verdade.
E depois, aqui em Portugal: coisas diferentes, em escala e violência, umas das outras - um crítico literário avaliando a credibilidade da escritora Madalena Sá Fernandes pelas suas fotos de Instagram, um sociólogo escarnecendo de quem o acusa de abuso sexual e dizendo que as verdadeiras mulheres abusadas são as que se calam. Num hotel, a paz da influencer Mariana Bossy é importunada pelo tipo que tentou normalizar o atropelamento de seres humanos como um fait divers divertido e que não só anda impunemente à solta como ainda ameaça pessoas de pancada. E para coroar toda esta montanha de agressão, jovens rapazes influencers filmam-se a violar uma das suas fãs, de 16 anos, perante uma plateia de mais de 30 mil pessoas online que viram o video, sendo que a nenhuma delas passou pela cabeça denunciar aquela monstruosidade. Os jovens são postos em liberdade, um juiz chega mesmo a considerar se terá acontecido violação ou não, eles voltam a estar online, provocações acontecem - “se atingirmos X likes voltamos a mostrar o vídeo!” - e outros jovens rapazes disparam sem dó nem piedade a várias mulheres, como a cantora Jura, que falam sobre o assunto nas redes, com insultos e ameaças. E nos sites dos jornais, o eterno e previsível desfile de títulos repetidos: “Pena suspensa para violador”, “Pena suspensa para violador”, “Pena suspensa para violador”. A definição oficial de “pena suspensa” diz tudo sobre a mentalidade da justiça portuguesa sobre este assunto: a pena suspensa acontece quando a natureza do caso leva a concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. “Menino feio. Vá, vai lá à tua vida”. Há sempre uma segunda hipótese para um violador. Uma segunda hipótese para atacar outra vez, claro.
Os homens estão a odiar mulheres, e começa a ser quase pandémico. “Não todos”, diz sempre alguém - eu próprio já terei proferido essa frase, ferido pela generalização. Não todos, mas muitos. Demais. Isto lembra-me um dos meus pedaços de diálogo preferidos de Adolescence, quando a psicóloga pergunta ao miúdo se o pai tem amigas mulheres e ele responde, indignado, “o meu pai adora a minha mãe!”. E isto resume um certo espírito: as mulheres são para casamento e procriação - de resto, mais nenhum afecto ou respeito é necessário. Quando ouvimos “gurus da masculinidade” como os Tates da vida, percebemos que, na verdade, esses homens amam outros homens, mesmo que não vão para a cama com eles. Mas não amam mulheres: utilizam-nas.
Quando publiquei no meu Instagram um mosaico de desilusão, com as caras de todos estes protagonistas portugueses de ódio misógino, houve quem se insurgisse: que eu não podia comparar uma violação a uma análise machista do trabalho de uma escritora (uma escritora que escreveu sobre o pesadelo de violência que viveu e que ali estava a ser descredibilizado). Como é óbvio, é diferente agredir verbalmente e agredir fisicamente. Mas, na sua essência, isto são tudo pedaços interligados do mesmo problema. É a normalização teórica do ódio às mulheres que leva à normalização prática da violência, haja mais ou menos graus de separação entre uma e outra.
É por isso que faz todo o sentido, nesta fase degradante da História da Humanidade, que se comece a reflectir sobre isto como um enorme puzzle que tem de começar a ser dissecado e desfeito peça a peça.
A avaliar pela data do post anterior e a deste, pode-se dizer que a periodicidade destes escritos é mais ou menos anual. 😁 Devias escrever mais aqui, aproveita enquanto não se torna mais uma plataforma tão tóxica como as outras.
Também começo a estar cansada de tudo isto e só consigo pensar "quando é que vem o asteróide mesmo?"